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8 x 3

O dia tem vinte e quatro horas. Delas, perfeitamente calculado: oito para trabalhar, oito para dormir e mais oito para lazer e assuntos pessoais. Belamente composto, orquestrado, como uma banda sinfônica em movimento. Uma valsa quase, uma ländler em harmonioso compasso em três tempos.

De resto, tudo variações. Se Antônio trabalha dez horas por dia, se Cleuza gasta duas horas na ida e uma hora e meia na volta no transporte, são variações. A valsa persiste; ela está ali, na cifra, imperturbável, tremenda. Se o lazer é arrastado do lado por tarefas de mãe, filha, esposa decente; se uma noite ou quarenta no ano se foram entre gritos, fome, febre, tirar água, encher poças, ficar debruçado no chão até os tiroteios passarem ou a polícia sair do barraco, a ländler existe no além, desenhada marcando sem sustos o melhor triunvirato da vida.

Se alguém, quer, sente ou pode deixar do seu dia quinze horas de braço na labuta do que ama fazer, que as deixe. Outras quinze outrem há de deixar em braçal cumprimento do que for para compensar. Esta música não para, não: se revezam os instrumentistas e a trindade prossegue a tocar.

O dever.

Mecanismo perfeito, organismo sucinto, dá corpo ao sustento da equilibrada moral pós-social. Dançarinos terá pelos tempos; se um cair, se milhares deitarem exaustos, doentes, mutilados, gastos, arrasados, milhares virão. Assim toca a orquestra sinistra; assim, música lá no puteiro, no navio negreiro, na massa do mar de camisas, leggings, rasteirinhas, TVs LED a prazo, boletos, crediário. Tantos há que são filhos do tédio, do amor, do churrasco, do mandato de se multiplicar.

Três tempos.

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Ce(n)tro

Centro, palavra reconfortante. Sou de centro; estou centrado; vivo e represento o equilíbrio.

Sou centrista e tão concentrado em centralizar-me que não enxergo o ônus do meu centrismo ao redor. Dispo-me de posições e posicionamentos, pois afinal o centro é reto, a postura certa; afasto-me da direita, e que ela carregue o peso dos mortos; distancio-me da sujeira libertina da esquerda.

Sou de centro e me equilibro, apenas, sob o fardo das minhas responsabilidades. Não, não é acúmulo de privilégio; muito pelo contrário: o centrista é ponta de lança da racionalidade. Só que sem lança, pois lança é com os outros (com os que me rodeiam e, se necessário, na mão de quem eu, central, comandarei do alto da minha sapiência). Só que sem ponta, também; bem mais no meio, mesmo. Centrado.

Sou central e, portanto, essencial. Ué! Daqui no meio dá para ver tudo que tem de errado em volta. No meio e em cima do muro, é claro. Não é para não pisar e me misturar, mas sim para não cair. No centro e acima é o faro do porto seguro. Não é covardia nem falta de vontade para tentar avançar ou –Deus me livre!- mudar qualquer coisa. Eu mudo e muito: mudo o voto, mudo o apoio, mudo o discurso dentro de minha proverbial moderação. Mudo o carro, mudo o gesto, mudo o cargo. Nunca graças a manter-me pendurado no nada, nada disso!

Sou tão centrado que consigo me balançar, apenas um cadinho, e chegar a pegar a mão da esquerda quando ela precisa; afinal, sou magnânimo. Tão centrado que posso me balançar mais um pouco e dar a mão para a direita, que me precisa para se validar. E eu balanço com a barriga, aquela com a que empurro decisões; a mesma com a qual meus caros representantes legisladores centristas aprisionam as ações afirmativas e seguram os pedidos de impeachment se acham pertinente.

Sou moderado e com isto estou de bem com a mídia. Ninguém me escracha nos restaurantes, nem nos museus, nem nas boates, nem nos puteiros. Viajo tranquilo, falo livremente e durmo sem medo. Tenho família em casa e amante no Centro. Não apoio o aborto nem a pena de morte; que se matem por isso os extremos. Existo além da discórdia, pois respeito a Constituição. A tradição venero: a minha, é claro. Quando algo cai da graça, lá estou eu cogitando tirar uma mão do bolso e fazer um aceno para minha popularidade. Nunca popular. Jamais populista!

Sou ponderado. Muitas vezes escalado para tomar decisões. Sempre salvaguardado pela minha centralidade. Não me molho e não me queimo.

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Perfeita aos olhos de Cristo

Eu nasci perfeita; isto que minha mãe sempre falava. Todos os dedinhos, duas orelhinhas iguais, os pés cheinhos embora fosse bem magra, e até os cílios. Bom, acho que quase toda mãe e todo pai deve olhar para as mesmas coisas e pensar igual.

Minha mãe, no entanto, falava isto com um quê de tristeza. Sempre. Quando eu ainda era criança, eu não entendia por que ela tinha aquela expressão no rosto toda vez. Fui crescendo, ainda sem compreender, mas sim percebendo que a tristeza se transformava em amargura, e a amargura virava outra coisa.

Eu nunca tive nada contra Jesus. Aliás, fui criada na fé cristã, acreditando no que escutava na minha família, na igreja. Creio em Deus, em Jesus. Isto não pode mudar em mim; pelo motivo que for. Não sou boba: sei que é difícil acreditar, mas a fé não acredita, é.

Foi talvez por isso que era tão difícil para mim, ouvindo algumas das coisas que as pessoas falavam, vendo o que outras faziam, compreender como elas se chamavam de cristãs. Sei… Quem sou eu para julgar? Mesmo se os outros viverem julgando, quem eu sou perante o Senhor? Todos nós erramos, todos pecamos. Ninguém é infalível. Defeitos, todos temos. Pensando nisso, eu me conformava diante do que não sabia; aquilo que nem imaginava, mas sentia que deixava minha mãe, minha família toda, embora não falasse, aflita. Ninguém é perfeito, e talvez aqueles olhares amargurados, aquela tristeza, estivessem equivocados; quiçá faltasse compreender, lembrar que todos temos defeitos, embora eu não soubesse qual era o meu.

Não, eu não percebia que o problema era que eu fosse muito menininha. Garotas são garotas, não é não? Eu não era mais frágil que minha irmã, nem mais chorona que minhas amigas. Eu era bem comportada. Eu não gritava, era limpinha, arrumada, sabia de cor os louvores e tentava ajudar na casa.

Mas ninguém falava nada; apenas os olhares, a tristeza que virou amargura que se tornou desprezo. Em casa. Aquela vez que eu escutei, pela primeira vez, que alguém me chamava de POC, aquela vez eu demorei a perceber, como algo que escorrega da mão e notamos que não estamos mais segurando até quase bater no chão. Ah, mas entendi o tom! Assim que a escorregada e a palavra coincidiram, eu percebi que não era algo agradável. Fiquei quieta, passei batido. Quando cheguei a casa ainda não sabia para quem perguntar; se fosse algo ruim, qualquer coisa, com certeza eu não queria falar para minha mãe e deixá-la triste, mais triste. E minha mãe não saberia. Eu já tinha entendido que as mães e os pais não sabiam de tudo. Minha mãe não tinha estudado muito, pois tinha abandonado a escola para começar a trabalhar.

Poque? Poke? Póqui?

Confiei numa professora que tinha na escola. Talita, ela se chamava. Ela era meiga com todos meus coleguinhas, e muito também comigo. Eu via que outras professoras e até professores não gostavam muito dela e talvez por isso que eu me aproximei. Não tinha nada de errado com ela; quem não gostasse era porque a julgava por algo, e tinha de ser por algo que ela não tinha feito, porque ela nunca fazia nada de ruim. Eles a julgavam porque ela não era perfeita do jeito que eles esperavam que ela fosse. Como eu. Olha só a mente de uma menina!

Fui um dia no recreio falar com a Talita. Ela era inteligente e sabida, e muito esperta, no bom sentido. Aproveitei a hora do recreio porque não fazia ideia em que outro momento eu poderia falar com ela. Diferentemente de outras professoras da escola, ela não frequentava minha igreja. Até pensei que seria isto que as pessoas não aceitavam dela. Eu sempre pensava que, como ela era meio japonesa, seguramente frequentaria uma igreja japonesa, com um padre ou pastor japonês. Até achava engraçado imaginar se eles acreditariam que Jesus tinha olho puxado, mas isto eu não falava porque sabia que era debochar dos outros e falar bobagem da religião.

Cheguei do lado dela e perguntei se podia fazer uma pergunta. Ela respondeu que eu já estava fazendo uma pergunta, e riu. Não entendi, mas ri também porque vi que ela não estava se sentindo incomodada. Fiz minha pergunta. Ela ficou séria, embora tentasse esconder. Chegou bem pertinho e pediu para eu repetir, e perguntou se eu tinha certeza que era isto que tinham me falado. Perguntou também quando, onde exatamente, e quem. Eu não soube responder exatamente, apenas que tinha sido uns dias atrás, voltando do mercado, na rua, e que uns rapazes tinham falado.

Ela ficou pensando, mexendo apenas os olhinhos, sem fazer careta de pensar, mas eu sabia que ela estava pensando. Então ela me perguntou se eu acreditava nos ensinamentos da Bíblia (ela sabia que sempre íamos à igreja). Eu respondi rapidamente que sim, que é claro, acreditava. Aí ela olhou nos meus olhos e perguntou de novo, dizendo que não era nos dizeres das pessoas que ela estava perguntando, mas sim na palavra de Deus. Eu fiquei um pouco confusa; achava e não achava que tinha compreendido o que tinha de diferente. Respondi que sim, que é claro; eu acreditava e creio em Deus, na Sua palavra, nos ensinamentos de Jesus. Acreditava lá atrás e ainda acredito.

Não sei bem por quê; aliás, é tanta coisa que não caberia em uma noite só. Prefiro agora me lembrar das palavras da Talita. Ela me falou, com certeza e determinação, que aquilo queria dizer “Perfeita aos Olhos de Cristo”. Ela era muito esperta. Ela me falou isso e eu só consegui entender que era ela que tinha falado, que eram suas palavras, muito tempo depois. Sei lá… O mais importante, o que me marcou para sempre, foi exatamente o que ela disse. Ela foi a primeira a me ver, a me enxergar. Ela me chamou de perfeita; não que eu fosse. Nunca acreditei e Deus me livre de acreditar!

Minha mãe sempre falava, na sua tristeza primeiro, depois na sua amargura, finalmente no seu desprezo, que eu tinha nascido perfeito.

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Isolamento (working project)

–Amanhã faremos barba e cabelo; sim, amor?

Ramiro sorri timidamente, como quem não quer contradizer nem contestar, tentando expressar gratidão. Foi ele mesmo que falou e falou que estava desarrumado; a barba estava ficando sem jeito e ele não gostava disso. E, mesmo sem poder sair, debilitado e exposto, tinha claro na sua consciência que precisava estar bem apresentado, digno, até em sendo para encarar esse destino incerto.

Como se atesta a dignidade de uma vida?

Ele entra no banheiro, um passo de cada vez; tempo de sobra, o de sempre e o de agora. Ironia destes tempos, o tempo: ele costumava se indagar sobre o tempo que teria de vida, se lhe restaria muito ou quanto; nas horas do ócio da solidão, ponderava questões para as que, sabia, não existe resposta. Hoje, no entanto, perdia-se em considerações banais: a dignidade de um rosto bem lavado e a barba feita numa pia limpa. Impecável: livre de pecado; pois, quem sua face asseia com a límpida água, clara e corrente na bacia clara da manhã, sua dignidade exibe na limpeza dos seus atos. Ramiro até sorriu um sorriso debochado diante de tamanha banalidade, quiçá a pior interpretação de dignidade que poderia lhe ter ocorrido.

Dignidade: pela quantidade de vezes que o banheiro é lavado por semana, mesmo que seja limpo por outra pessoa? A certeza o alfinetou, como nunca ou mais que sempre, que seus filhos estariam se sentindo mártires da pureza das almas, passando um pano na banheira; seus netos, posando cheios de dentes orgulhosos ao lado de um ovo frito por eles mesmos em alguma rede social. E todos, da maneira mais ou menos indireta que o conforto do dinheiro permite, garantindo-lhe a santidade de uma pia brilhante, pela barganha de um salário mínimo, casa e comida, com que compraram parcelado seu sossego.

Ramiro olha para a Adrienne. Não pode mandá-la voar, sabendo que, talvez, voar seria cair. Erige-se em seu cuidador: o mal-lavado velando pelo sujo; só que, aqui, tudo e todos bem limpinhos.

Agora, todos se medindo em transmissões ao vivo de aulas de ioga, acompanhadas e referendadas só se postas na linha de tempo da rede, para quem está do seu lado e nunca esteve, ver. Hoje, se arrumando para ir ao trabalho em casa, pois é essencial se vestir e passar perfume para introjetar o pertencimento à comunidade remota. Nesta hora de se evitar o desespero, a desesperança abraça Ramiro enquanto ele olha para sua criada adquirida em cômodas cotas mensais, pensa no esmero da pia e no jeito dado para se preservar o estado de coisas de um mundo que apenas aprende a deixar a injustiça vencer.

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Gado

Dionisio, meu cachorro, olhando a chuva pela janela como se entendesse que não iremos passear. Na verdade, ele compreende, sim: eu que vivo me questionando e cuidando de não “humanizar” o bicho. Coisa de moderninho desocupado!

Cada um com seu modo de abraçar o mundo. Sob o som da chuva tenaz, eu relia a notícia da retirada de livros. Deve ser mesmo que eles são nocivos… Talvez proibir um texto literário no qual uma personagem –fictícia, sem importar a relevância nem o conteúdo de sua história?, bradam os vermelhos– é lésbica, ajude a proteger nossos filhos e evitar que eles se tornem depravados. Porque, com certeza, isso é antinatural e aviltante. E satânico… Sim, seguramente, satânico!

E até ouvi uns professores reclamando que vários dos livros estão nos conteúdos de leitura… Nunca vi coisa igual! Ainda bem que eu acabei a escola faz muito tempo; mas precisamos zelar pelas nossas crianças.

O cachorro continua a olhar para a chuva. penso eu, é bem mais simples ser um animal, sem ficar exposto a tanta degeneração intelectual e moral. Bem que eu queria ter nascido um gato. Ou um boi…

 

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A Metade

Devia ter guardado metade do chocolate; agora tava com fome de novo. Mas estava tão bom! Tinha alguma coisa para comer, concerteza, mas ela queria chocolate agora. Talvez amanhã ou nesses dias tivesse mais doces de novo. A Doutora ganhava muita coisa nestas datas, e nem sempre ficava com tanto doce. Frescura. E nem sempre gostava dos chocolates que ganhava; frescura dela. Tava tarde, e amanhã tinha a viagem da Giulia, e concerteza ia ficar uma zona na casa arrumando as malas e com as amigas da Giulia.

Daí ficou pensando no Rogério. Safado! “Vamos se pegar,” falou ele. “Cê é louco!” falou ela. “Para com essa palhaçada. Pensa que eu sou… tua prima.” Aí ele falou “Eu já peguei minha prima, e ela era mais novinha que você.” Não adianta com esse cara. Mas daí ele ficou pensando alguma coisa, e meio que perdeu o tesão. Ainda bem.

No dia seguinte, ela chegou na casa e estava tudo bem certinho. A Giulia tinha preparado quase tudo, só faltava arrumar. As amigas vinham mais tarde com o Rogério. Ela pensou, após a viagem talvez a Doutora vai me dizer de ficar na casa. Vai que fico empregada.

Ao chegar à casa, a Doutora chamou Ivanete. Vinha ponderando a possibilidade. Desistiu por enquanto, adiando a conversa; precisava tomar um banho. Deu para ela um dos presentes que tinham comprado para os funcionários e relaxou na água morna alguns minutos; uma delícia poder esquecer tudo e todos por um instante. Tantas pacientes, e aquele trânsito, sem o Rogério, que estava buscando as meninas para a viagem. Sim, a oferta seria interessante.

Abriu os olhos e olhou pela janela. As cores do pôr do sol, cálidas e convidativas inclusive interrompidas pela silhueta dos prédios do outro lado do parque, faziam com que quisesse mais e mais terminar a semana e estar no sítio.

Uma vez que saíra do banho e se vestira, foi ao estúdio e conferiu a agenda para o dia seguinte. Mandou uma mensagem para a sua secretária, para assim que puder marcar consulta com a esteticista. Ivanete trouxe o chá. Aproveitou o momento:

“Nete, sabe… pensei que seria bom ter uma empregada aqui no apartamento; para ficar. Quer dizer, agora com os horários de todos tão diferentes.”

“Sim, Doutora. Eu…”

“Enfim, vou aceitar a proposta da esposa do Rogério.”

“Sim, Doutora.”

“Mas é claro que você pode continuar vindo para ajudar na faxina, com as compras; tudo que precisar. Você é muito de confiança, e a Giulia gosta de você, Nete.”

“Sim, Doutora. Obrigada.”

Quando saiu para voltar em casa ficou andando e pensando, descendo até o ponto. O trânsito tava um lixo. Comprou salgadinhos num camelô na esquina. Um cachorro aquele Rogério. Agora ele vai se lascar se quiser qualquer coisa! Quando a esposa vim vai compricar, saiba disso. Pelo menos tinha chocottone para comer na novela.

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Esvaído

Beberam-se na paixão como se cada um fosse a última gota d’água no mundo. Tinham esperado, desejado tanto. Um bom tempo passou-se enquanto se apreciavam e percorriam incrédulos, trêmulos, e horas após o fato consumado, acariciando os corpos que tinham feito deles bandidos da noite.

E depois? Uma breve alva, um sol gritante anunciando o dia e o fim. E agora?

Melissa apoiou o cigarro fumegante sobre os cadáveres da madrugada e olhou nos olhos de Ricardo, ainda desnudos, ainda roxos, porém já escondidos na cavilação e a falsidade que seguiria ao romance de uma noite só. Ou talvez viessem mais romances truncados, de início e final em poucas horas? A dúvida era o terceiro presente, mais físico que qualquer um dos outros que aguardavam ignorantes pelo retorno dos pecadores.

Ele devia voltar ao lar, junto à família, sua realidade e o que tanto tinha cobiçado e construído ao longo dos árduos anos na cidade. Muito para simplesmente arriscar com um ato irresponsável. Ela podia fingir mais um pouco, sair para andar no bairro, pegar o ônibus e chegar para o almoço na república, sem precisar expiar mentiras com demoradas explicações. No entanto, a simples ideia de afastar-se daquele lugar a deixava algo amargurada de antemão. Não era o lugar em si, mas as ações que ela relutava em transfigurar em lembranças tão logo assim.

Ao entrar na sala, os filhos não correram para recebê-lo, a esposa não se escutava andando por aí, nem a casa pôs-se a dançar. Ele sabia disso; porém, voltou. A fragrância das ondas de Melissa ainda espreitava por trás do cheiro novo do sabonete cuidadosamente passado em todo canto: a presença daquela mulher ficara impregnada na memória da sua pele. Ele sabia; ele sempre soube.

Tão logo assim se amaram –tão logo assim se foi. Sem planos nem promessas, apenas alguns beijos descendo as escadas até quase na rua. Quase. Na rua não tiveram mais daquilo que inventaram; aquilo tão antigo como um olhar roubado ou o desprezo afetado.

Enfim, ela também sabia. Calmou-se, se por acaso ficara um tênue devaneio, olhando as vitrines, como quem quer lembrar alguma bugiganga faltando na cozinha. Um olhar de terça de manhã, qualquer terça, por sinal.

Mais um dia na vida normal dos corriqueiros transeuntes que se cruzam nas calçadas. Um pelo na lapela, ninguém fica tecendo hipótese. Uma marca na nuca, quem enxerga no pulo do cabelo? Nada sobra. Nem sequer o temor da descoberta. Apenas, quiçá, um eco de remorso na trapaça do silêncio.

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