Eu nasci perfeita; isto que minha mãe sempre falava. Todos os dedinhos, duas orelhinhas iguais, os pés cheinhos embora fosse bem magra, e até os cílios. Bom, acho que quase toda mãe e todo pai deve olhar para as mesmas coisas e pensar igual.
Minha mãe, no entanto, falava isto com um quê de tristeza. Sempre. Quando eu ainda era criança, eu não entendia por que ela tinha aquela expressão no rosto toda vez. Fui crescendo, ainda sem compreender, mas sim percebendo que a tristeza se transformava em amargura, e a amargura virava outra coisa.
Eu nunca tive nada contra Jesus. Aliás, fui criada na fé cristã, acreditando no que escutava na minha família, na igreja. Creio em Deus, em Jesus. Isto não pode mudar em mim; pelo motivo que for. Não sou boba: sei que é difícil acreditar, mas a fé não acredita, é.
Foi talvez por isso que era tão difícil para mim, ouvindo algumas das coisas que as pessoas falavam, vendo o que outras faziam, compreender como elas se chamavam de cristãs. Sei… Quem sou eu para julgar? Mesmo se os outros viverem julgando, quem eu sou perante o Senhor? Todos nós erramos, todos pecamos. Ninguém é infalível. Defeitos, todos temos. Pensando nisso, eu me conformava diante do que não sabia; aquilo que nem imaginava, mas sentia que deixava minha mãe, minha família toda, embora não falasse, aflita. Ninguém é perfeito, e talvez aqueles olhares amargurados, aquela tristeza, estivessem equivocados; quiçá faltasse compreender, lembrar que todos temos defeitos, embora eu não soubesse qual era o meu.
Não, eu não percebia que o problema era que eu fosse muito menininha. Garotas são garotas, não é não? Eu não era mais frágil que minha irmã, nem mais chorona que minhas amigas. Eu era bem comportada. Eu não gritava, era limpinha, arrumada, sabia de cor os louvores e tentava ajudar na casa.
Mas ninguém falava nada; apenas os olhares, a tristeza que virou amargura que se tornou desprezo. Em casa. Aquela vez que eu escutei, pela primeira vez, que alguém me chamava de POC, aquela vez eu demorei a perceber, como algo que escorrega da mão e notamos que não estamos mais segurando até quase bater no chão. Ah, mas entendi o tom! Assim que a escorregada e a palavra coincidiram, eu percebi que não era algo agradável. Fiquei quieta, passei batido. Quando cheguei a casa ainda não sabia para quem perguntar; se fosse algo ruim, qualquer coisa, com certeza eu não queria falar para minha mãe e deixá-la triste, mais triste. E minha mãe não saberia. Eu já tinha entendido que as mães e os pais não sabiam de tudo. Minha mãe não tinha estudado muito, pois tinha abandonado a escola para começar a trabalhar.
Poque? Poke? Póqui?
Confiei numa professora que tinha na escola. Talita, ela se chamava. Ela era meiga com todos meus coleguinhas, e muito também comigo. Eu via que outras professoras e até professores não gostavam muito dela e talvez por isso que eu me aproximei. Não tinha nada de errado com ela; quem não gostasse era porque a julgava por algo, e tinha de ser por algo que ela não tinha feito, porque ela nunca fazia nada de ruim. Eles a julgavam porque ela não era perfeita do jeito que eles esperavam que ela fosse. Como eu. Olha só a mente de uma menina!
Fui um dia no recreio falar com a Talita. Ela era inteligente e sabida, e muito esperta, no bom sentido. Aproveitei a hora do recreio porque não fazia ideia em que outro momento eu poderia falar com ela. Diferentemente de outras professoras da escola, ela não frequentava minha igreja. Até pensei que seria isto que as pessoas não aceitavam dela. Eu sempre pensava que, como ela era meio japonesa, seguramente frequentaria uma igreja japonesa, com um padre ou pastor japonês. Até achava engraçado imaginar se eles acreditariam que Jesus tinha olho puxado, mas isto eu não falava porque sabia que era debochar dos outros e falar bobagem da religião.
Cheguei do lado dela e perguntei se podia fazer uma pergunta. Ela respondeu que eu já estava fazendo uma pergunta, e riu. Não entendi, mas ri também porque vi que ela não estava se sentindo incomodada. Fiz minha pergunta. Ela ficou séria, embora tentasse esconder. Chegou bem pertinho e pediu para eu repetir, e perguntou se eu tinha certeza que era isto que tinham me falado. Perguntou também quando, onde exatamente, e quem. Eu não soube responder exatamente, apenas que tinha sido uns dias atrás, voltando do mercado, na rua, e que uns rapazes tinham falado.
Ela ficou pensando, mexendo apenas os olhinhos, sem fazer careta de pensar, mas eu sabia que ela estava pensando. Então ela me perguntou se eu acreditava nos ensinamentos da Bíblia (ela sabia que sempre íamos à igreja). Eu respondi rapidamente que sim, que é claro, acreditava. Aí ela olhou nos meus olhos e perguntou de novo, dizendo que não era nos dizeres das pessoas que ela estava perguntando, mas sim na palavra de Deus. Eu fiquei um pouco confusa; achava e não achava que tinha compreendido o que tinha de diferente. Respondi que sim, que é claro; eu acreditava e creio em Deus, na Sua palavra, nos ensinamentos de Jesus. Acreditava lá atrás e ainda acredito.
Não sei bem por quê; aliás, é tanta coisa que não caberia em uma noite só. Prefiro agora me lembrar das palavras da Talita. Ela me falou, com certeza e determinação, que aquilo queria dizer “Perfeita aos Olhos de Cristo”. Ela era muito esperta. Ela me falou isso e eu só consegui entender que era ela que tinha falado, que eram suas palavras, muito tempo depois. Sei lá… O mais importante, o que me marcou para sempre, foi exatamente o que ela disse. Ela foi a primeira a me ver, a me enxergar. Ela me chamou de perfeita; não que eu fosse. Nunca acreditei e Deus me livre de acreditar!
Minha mãe sempre falava, na sua tristeza primeiro, depois na sua amargura, finalmente no seu desprezo, que eu tinha nascido perfeito.
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